sábado, 5 de outubro de 2013

Em busca de Odradek: entrevista com Richard Ribeiro (Porto)






















Depois do primeiro EP, Fora de Hora de 2008, voces demoraram 5 anos para lançar o primeiro álbum. Houve alguma razão específica para tanto tempo sem gravar?

De 2008 a 2012 estive muito ocupado tocando com vários artistas aqui em São Paulo, como Guizado, Pélico, Rob Mazurek, Maurício Takara, Jeneci, Dudu Tsuda, Chankas, Tulipa Ruiz, entre outros projetos. Por isso nao tive muito tempo para me dedicar ao Porto. Nesses cinco anos, fui compondo as músicas aos poucos, sem pressa e nem prazo, e só entrei em estúdio quando achei que tinha material suficiente para gravar um disco.

Quais as diferenças fundamentais que vocês veem entre o primeiro EP e Odradek?

Eu vejo mais como uma continuidade do trabalho. O Porto sempre foi um duo, o processo de composição ainda é o mesmo, as músicas sempre foram feitas a partir das melodias das guitarras, vibrafone, samples e bateria. De fato, o que mudou foram os parceiros musicas de um disco para o outro. No primeiro, quem gravou as guitarras foi o Renato Ribeiro e no segundo foi o Regis Damasceno. Além disso gravei metalofone no Fora de Hora EP e vibrafone no Odradek.

Fale um pouco a respeito do processo de composição e produção de Odradek. Sendo a maioria das composições de sua autoria, como vocês desenvolvem os arranjos e gravações?

Geralmente o processo de composição acontece de forma bem sensorial, longe dos instrumentos. No caso do Odradek especificamente, fui muito influenciado por livros que eu estava lendo, principalmente escritores de ficção-cientifica como Stanislaw Lem, Philip K. Dick e Theodore Sturgeon, só pra citar alguns. 

Esses escritores criam um universo peculiar, ímpar, estranho e muitas vezes fantátisco que serve como pano de fundo para aflorar um monte de questões humanas. Muitas vezes essas obras me levam a conhecer novos lugares, sentir novas sensações e a explorar universos que ainda não visitei. Isso é muito facinante e sempre foi muito inspirador para mim na hora de compor. Assim como fazem muito desses escritores, eu tento criar de alguma forma um ambiente único pra cada música do Porto.

A respeito do desenvolvimento dos arranjos, tudo é bem simples. Eu gravo as ideias principais da música em casa e depois levo para o estúdio. A medida que eu e o Regis vamos tocando, procuramos sentir como a música pulsa, como ela soa, o que ela sugere pra gente... E aí terminamos de arranjar juntos.

Um característica que salta aos olhos em Odradek é o fato de que cada faixa parece explorar um universo específico — por exemplo, o clima sombrio de “E a morte Perderá o Seu Domínio” contrasta com a luminosidade de “Capetinja” e assim por diante. Houve a intenção de criar um disco explorando nuances e contrastes?

Interessante essa sua leitura. Acho que esses contrastes acabam acontecendo de forma natural durante o processo todo. Quando começo a compor, a própria ideia inicial da música — que pode vir de uma melodia de guitarra, de um ruído, de uma ideia da bateria ou mesmo de alguma coisa que li ou vivi — já sugere um caminho, uma intenção. No caso de “E a morte perderá o seu domínio”, pra mim ela foi uma música mais sombria desde o início. Então, aos poucos trabalhei pra chegar o mais próximo desse ambiente que ela sugeria para mim. O mesmo aconteceu com a "Capetinja" e com todas as outras faixas do Odradek. A música geralmente diz o caminho a ser seguido e eu vou atrás em busca dele, acho que é isso basicamente o que acontece.

Apesar da diversidade, o som de Odradek é grave e encorpado do início ao fim. As vezes parece que estamos escutando um disco de vinil. Houve de fato essa preocupação de produzir dentro de uma sonoridade mais "quente"?

Não tivemos uma conversa pra determinar como o disco deveria soar. O que eu mais queria durante a gravação era captar como soávamos tocando juntos, como se a gravação fosse uma fotografia do Porto tocando as músicas. Por isso foi tudo muito rápido. Gravamos juntos na mesma sala, quase tudo em uma tarde. No outro dia fizemos alguns overdubs de guitarra e vibrafone e já começamos a mixar.

A respeito da sonoridade do disco, acho que foi um conjunto de coisas que favoreceu a chegar em uma sonoridade mais quente, como você falou. Parte disso é por causa dos nossos instrumentos. O som da minha bateria e dos meus pratos são graves, alguns samples com sons sintetizados tambem são. Há também o som da sala do estúdio e a maneira que o Bruno Buarque captou e gravou tudo, além do disco ter sido masterizado pelo Fernando Sanches no estúdio El Rocha.

As faixas de Odradek possuem títulos curiosos. São apenas títulos ou existe algum conceito por trás deles?

Cada música tem uma história pra mim, mas ao invés de eu explicar o que cada uma significa, prefiro deixar que cada pessoa sinta, imagine e que possa criar a sua própria história com cada uma delas.


Mesmo que os amantes se percam, continuará o amor from Porto on Vimeo.

Por que Odradek?

Sabe quando você se depara com algo que te causa muitas sensações e que você não é capaz de explicar? 

Eu já encontrei essa palavra duas vezes, em livros de dois autores. Em cada história, pra cada personagem, ela aparecia com um ou mais significados diferentes. Até hoje não sei definir ao certo o que é Odradek, mas quis, assim como esses autores, dar a minha própria versão pra essa palavra. E o mais interessante pra mim é que fica a cargo da subjetividade de cada um explicar o que ela quer dizer.

O som encorpado do disco também sugere mais instrumentos do que duas pessoas podem tocar. Como vocês pretendem reproduzir esta sonoridade no palco?

Como a gravação do disco foi praticamente um registro ao vivo, essa adaptação para as apresentações quase não existe. Apesar do Porto ser um duo, temos quatro instrumentos no palco durante os shows. Muitas vezes toco bateria e vibrafone ao mesmo tempo, e também disparo alguns samples, Regis toca guitarra de uma forma que preenche muito espaço quando é necessário.


Entrevista realizada por Bernardo Oliveira por e-mail.

Porto se apresenta nesta quinta-feira, 10/10, com o Duplexx.
Quintavant - Audio Rebel (RJ)

Visconde Silva, 55
20h/R$15

https://www.facebook.com/events/199906663514072/

Porto - Odradek (2013, s/g, Brasil)

























No conto “As preocupações de um pai de família”, Kafka descreve Odradek, um estranho mecanismo semelhante a um carretel de linha em forma estrela, entre outros detalhes. Trata-se, portanto, não de uma abstração, mas de uma descrição das características de um objeto que, segundo o autor, não seria estudado se não existisse. Não se sabe ao certo sua finalidade, e Kafka conclui a descrição material do objeto com uma definição parcial: se já teve alguma função, Odradek parece, neste exato momento, quebrado. No conto, é justamente a partir do momento em que se aparenta a uma máquina quebrada (ou a uma criança), que Odradek começa a falar: “domicílio incerto”, e ri “um riso sem pulmões”.

Haveria um paralelo entre a forma de Odradek, o disco, e Odradek, o objeto literário? Odradek possui uma forma material, embora desprovida de função; num segundo momento, toma a forma de um indivíduo falante. Sua saúde é debilitada, seu silêncio, persistente. Mas quando toma a palavra, parte velozmente do balbucio para a ironia. E cala-se novamente. Domicílio incerto, isto é, Odradek foge aos códigos da matéria, do tempo, da cultura. Odradek é o monolito de Kubrick e é mais que isso. Odradek é um depósito de problematizações, espelho da cultura e seu efeito reverso, o devir-objeto do homem, mas também o devir-humano do objeto. Odradek não serve para nada e opera sobre tudo, não representa nada e abrange simultaneamente toda a babel de coisas.

Não que Odradek, o disco, seja radicalmente fugidio e dissimulado em sua proposta estética, o que ampliaria ainda mais a conexão com a presença de Odradek, o signo. Não é. Trata-se de um empreendimento no território da música instrumental brasileira contemporânea, fortemente influenciado pelas harmonias “clássicas” do progressivo inglês (King Crimson, Genesis), pelo rock instrumental anglo-americano (Mogwai, Tortoise), pela discursividade abstrata do jazz contemporâneo (o de Chicago, sobretudo) e por tantas outras referências, como é de praxe na música de hoje.

No entanto, ao atravessar cada uma de suas oito faixas, o ouvinte irá se deparar com um ziguezague de possibilidades, mudanças de rota, movimentos bruscos, minúcias, pistas, frestas e arestas. Assim, a aparência de Odradek, o disco, tal como o personagem de Kafka, é ambígua: consegue, através da familiaridade, circunscrever um universo próprio que não se deixa sequestrar pelos códigos do rock, do jazz e de outros gêneros.



Não recorro a uma argumentação meramente retórica. A melodia-tema e os arroubos free de “Capetinja” introduzem o ouvinte em um desses universos. As várias sessões de “Mesmo que os amantes se percam, continuará o amor” surpreendem: desde a introdução dos vibrafones com efeitos variados, efeitos a meio caminho da surf music, até o crescendo noise desaguar em um groove estranho. “As estrelas não são para os homens” e “Tao Zero” exploram tensões entre elementos melódicos e ruídos eletrônicos, enquanto “A Morte Perderá seu Domínio” se encontra a meio passo do terror e do delírio: o terror a cargo dos intervalos sombrios executados pela guitarra estridente, o delírio em função de uma percussão caótica composta por vidros, sinos, e demais objetos de sonoridade aguda, que se alonga por mais de dois minutos. “Dezessete nós” se parece como uma moda de viola ou uma seresta digital, enquanto a inusitada “Remédio para Melancolia” é um glitter-rock polifônico. A dupla consegue a proeza de aliar o punch instrumental com a consistência plural das composições. Se abordamos as melodias, pode-se dizer que Richard Ribeiro é, precisamente, um melodista. Se prestamos a atenção à instrumentação, antes do rigor técnico, ressalta-se a precisão do propósito de ambos os integrantes. 

Essa movimentação intensa, dentro e entre as composições, testemunha a versatilidade do Porto. Richard Ribeiro e Regis Damasceno se multiplicam em overdubs e execuções simultâneas: Richard toca bateria, percussão, vibrafone e eletrônicos, enquanto Damasceno preenche os espaços com sua guitarra. “A quarta hora”, única parceria do disco, encerra Odradek reafirmando o equilíbrio entre a melodia e o ruído dentro do qual a dupla conseguiu obter diversidade. Com essa artilharia, criam um universo em cada faixa (cf. a entrevista). Daí uma possível comparação com o mito Odradek: qualquer que seja sua significação, é estritamente necessário que o intérprete aposte todas as fichas em sua própria resposta. 

Bernardo Oliveira